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O caso UFCG: Estado Laico e Liberdade Religiosa no Campus

Introdução

Relatos dão conta de acontecimentos – no mínimo, controversos – que vêm ocorrendo na Universidade Federal de Campina Grande – PB (UFCG). Ocorre que um grupo de oração de estudantes católicos da instituição, denominado Grupo de Oração Universitário Santa Teresinha do Menino Jesus, que se reúne ocasionalmente durante os intervalos das aulas, está sendo acusado de violar o Estado laico brasileiro. Os acusadores, cujo rol incluem um professor do Departamento de História da universidadee o Grupo de Estudos Antonio Gramscialegam, entre outras coisas, que a prática de realizar orações e/ou qualquer outra atividade de natureza religiosa é “inconstitucional” e “obscurantismo”, que “a religião é uma questão de foro íntimo” e que vão “combater essa aberração”. 

Ora, será se os argumentos destes que, supostamente, estão “defendendo o Estado laico” encontram respaldo histórica e juridicamente? Ou será se tais atos nada mais são senão uma clara intolerância ao cristianismo? É acerca disso que vamos discorrer no presente artigo.

O Conceito de Estado Laico

Apesar do termo “Estado laico” comumente vir à tona nos debates sobre política, história e religião, geralmente as discussões e argumentos levantados estão carregados de superficialidade e subjetividade. Neste sentido, cumpre esclarecer, a priori, que o conceito de Estado Laico não é travado, ou seja, varia de acordo com as peculiaridades dos países e seus respectivos ordenamentos jurídicos.

Em sentido amplo, porém, quando se fala sobre laicidade, implica dizer que Estado laico é aquele onde há a separação entre a esfera de poder da igreja e a esfera de poder do Estado, nas palavras do jurista Dr. Ives Gandra Martins:

[No Estado Laico] o Poder Religioso não se confunde com o Poder Político. O Poder Religioso cuida das relações do homem com Deus, e o Poder Civil, das relações dos homens entre si, em sociedade, ou nas sociedades organizadas em Estado. São dois poderes diferentes, com áreas de atuação diferentes.[1]

Isto é, o estado é leigo (laico) no que se refere às questões religiosas. Ficando estas ao cargo dos clérigos, sacerdotes e afins.

Podemos ilustrar, ainda, o conceito de Estado Laico com as palavras do próprio Jesus Cristo: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”(Mateus 22:21). 

O Modelo de Estado Laico Brasileiro

Nem sempre o Brasil foi um Estado Laico. A Constituição Política do Império do Brasil (1824) trazia que a Igreja Católica Apostólica Romana era a religião oficial do império. No entanto, com o advento da Constituição Republicana, o estado se tornou laico e passou a permitir a igualdade entre todas as religiões.

A nossa Constituição Federal atual (1988) ampliou a liberdade religiosa dos brasileiros (trataremos a seguir sobre esse direito) e cravou a sua laicidade nos termos do artigo 19, inciso I, senão vejamos:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.[2]

Sucintamente e tentando fugir do “juridiquês”, o artigo acima citado diz que: (i) o Estado não pode privilegiar uma religião em prejuízo das outras; (ii) também não pode atrapalhar o funcionamento das religiões, tais como: suas reuniões, cultos, eventos, etc; (iii) o Estado pode colaborar com as religiões em prol do interesse público. 

Assim, à luz da Lei Maior do nosso país, não vemos absolutamente nenhuma hostilidade para com as religiões, de modo que o modelo de laicidade brasileira, conforme os juristas Thiago Vieira e Jean Regina, “não significa ausência da religiosidade na esfera pública, mas a garantia e a salvaguarda de todas as suas expressões”[3]

Ademais, cumpre ressaltar que, já que o Estado brasileiro não adotou nenhuma religião oficialmente, tampouco aderiu ao ateísmo como sua (des)crença oficial. Portanto, Estado laico não é Estado ateu ou Estado antirreligioso; pelo contrário, o modelo brasileiro permite e promove a coexistência de todas as religiões.

Liberdade de Religião ou Crença

A liberdade de religião ou crença consiste na garantia que cada cidadão tem de escolher seguir a crença que desejar, mudar de religião quando quiser, bem como de não seguir religião alguma. Este direito está fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana, que se refere a um valor moral e espiritual inerente à pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado desse preceito, simplesmente pelo fato de ter nascido como um ser humano. Para a cosmovisão judaico-cristã, essa dignidade advém de o homem ter sido criado à imago dei, isto é, à imagem e semelhança de Deus (cf. Gênesis 1:26).

No Ocidente, a Reforma Protestante do século XVI foi decisiva para a liberdade religiosa, pois apresentou ao mundo a liberdade de pensamento e consciência em matéria de religiosidade. Até então, a Igreja Católica Romana detinha o monopólio sobre a intepretação do cristianismo, contudo, com os desdobramentos dos atos, sobretudo, de Martinho Lutero, a autoridade do clero católico foi questionada e ali emergiu o marco inicial para que cada pessoa buscasse, di per si, o seu bem espiritual.

Atualmente, o direito à liberdade de religião está amplamente assegurado nas declarações, normas e tratados de Direitos Humanos, assim como nas Constituições dos países democráticos. A Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu artigo XVIII, por exemplo, diz: Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.[4]

A nossa Constituição Federal, por sua vez, no tocante à liberdade religiosa estabelece que:  

Art. 5º […]

 VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

 VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.[5]

Segundo o jurista José Afonso da Silva[6], a liberdade religiosa expressa no nosso texto constitucional se ramifica em três partes: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa

liberdade de crençaestá ligada à consciência, ou seja, o cidadão tem o direito de seguir ou deixar de seguir a religião que quiser, bem como de não seguir nenhuma religião, conforme seu pensamento interno o desejar.

Já a liberdade de cultodiz respeito a expressão religiosa. Neste sentido, garante ao religioso o direito de se expressar de forma isolada ou publicamente, conforme as suas crenças, ritos, cultos e doutrinas religiosas.

liberdade de organização religiosa, por seu turno, é a faculdade dada aos que confessam certa religião, para se organizar em pessoa jurídica e praticarem os atos civis em nome da organização que agrupa os seguidores da fé professada.

Além disso, nossas leis punem os crimes contra o sentimento religioso (art. 208 do Código Penal) e à intolerância religiosa (Lei nº 9.459, de 13-5-1997), entre outras proteções ao exercício do direito humano à liberdade de religião ou crença.

O caso UFCG

Considerando a proteção jurídica do direito à liberdade religiosa e o conceito de Estado laico ante o caso da UFCG, verifica-se claramente que há um gritante erro por parte daqueles que alegam violação da laicidade do estado, pelo fato dos integrantes do Grupo de Oração Universitário Santa Teresinha do Menino Jesus se reunirem nos intervalos das aulas para realizarem orações, entre outras atividades religiosas.

Ora, o direito à liberdade religiosa dentro do estado laico brasileiro permite a liberdade de expressão religiosa, o que inclui o direito de realizar orações e reuniões pacíficas em qualquer lugar do território nacional, incluindo os prédios estatais, como a Universidade Federal de Campina Grande, afinal, diferentemente daqueles que defendem a forma errada de laicidade, a religião não é meramente uma questão de foro íntimo, mas faz parte da vida pública do indivíduo e da sociedade. Logo, qualquer tentativa de obstar esse legítimo direito constitucional, por agentes estatais ou não, constitui flagrante violação de direitos.

Os pressupostos levados em consideração pelos que se posicionaram contra o grupo de oração partem da premissa errônea que o “Estado Laico é ateu”, acerca disso a Dra. Janaina Paschoal escreveu: “a equivocada construção de que o Estado laico é equivalente a um Estado ateu é consequência direta do materialismo marxista, justamente com o fim de padronizar, de controlar os indivíduos, subjugando-os a uma fluída e imprecisa coletividade”[7]. Não é de causar espanto, portanto, que o filósofo marxista que batiza grupo de estudos hostil aos religiosos no campus, a saber, Antonio Gramschi, tenha escrito:  “O mundo civilizado tem sido saturado com cristianismo por 2000 anos, e um regime fundado em crenças e valores judaico-cristãos não pode ser derrubado até que as raízes sejam cortadas”[8]. Em suma, os integrantes do grupo apenas estão seguindo a cartilha do seu mestre buscando “cortar as raízes” dos valores judaico-cristãos.

Cristianismo, Educação e o Surgimento das Universidades

Um fato histórico ignorado pelo aludido professor de história e seus seguidores, é que a educação escolar e o surgimento das universidades se deram, exatamente, pela ação dos cristãos. Conforme Valmir Nascimento rememora:

A história da educação e do surgimento das primeiras universidades está intimamente ligada ao cristianismo. Na primeira metade do século IV d.C, durante o Império de Constantino, quando o cristianismo passou a ser a religião oficial, a igreja veio a ser indicada como a responsável pela liderança e supervisão das atividades educacionais e escolares. Do século IV ao século X, escolas confessionais ligadas às catedrais católicas e episcopais ensinavam às crianças a doutrina cristã, assim como as sete artes liberais. O historiador Geoffrey Blainey recorda que as universidades resultaram, em grande parte, do trabalho da Igreja. Segundo Blainey, “fossem elas formadas por bispos ou grupos informais de professores e estudiosos, logo estavam unidas sob o mesmo comando — exceto as da região ocidental do Mediterrâneo; obedeciam aos preceitos e promoviam os objetivos da Igreja”.[9]

Cabe ainda lembrar que grandes universidades existentes até hoje, tais como, a Universidade de Oxford, a Universidade de Harvard, a Universidade Livre de Amsterdã, entre outras, foram fundadas por pessoas religiosas que professavam a fé cristã. Sem falar que grandes cientistas da história como Galileu (1564-1642), Kepler (1571-1630), Pascal (1623-1662), Boyle (1627-1691), Newton (1642-1727), Faraday (1791-1867), Babbage (1791-1871), Mendel (1822-1879) eram teístas; em sua maioria eles eram, de fato, cristãos. Em suma, não há que se falar em qualquer obscurantismo ou incompatibilidade entre fé e produção científica.

Conclusão

Por fim, urge esclarecer que aqueles que chamam a oração dos cristãos católicos na universidade de aberração ou tentam impedi-las, extrapolam qualquer medida razoável de liberdade de expressão, porquanto toda intolerância religiosa se inicia apenas na esfera do discurso até chegar ao statusde intolerância grave. Conforme alerta o constitucionalista Dr. Uadi Lammêgo Bulos,

A intolerância ultrapassa as barreiras da simples discordância respeitosa, comum na vida social. Revela uma atitude hostil em relação ao modo de pensar alheio. Pode partir de um preconceito, de um comportamento discriminatório, terminando em briga, racismo, desentendimento, crime e morte. Nesse contexto, também pode surgir o terrorismo, que é a intolerância em sua milionésima potência.[10]

Concluímos, relembrando, que o direito à liberdade de religião foi conquistado a duras penas. Pessoas foram decapitadas, queimadas, jogadas às feras e perseguidas das formas mais cruéis possíveis, simplesmente por crerem na sua divindade conforme sua consciência. Atualmente, as perseguições físicaspor razões religiosas ainda ocorrem em diversos lugares do mundo, o que é um anacronismo absurdo. 

Preocupa-se, outrossim, a perseguição simbólicaque ocorre na sociedade e nas universidades, como no caso da UFCG, contra pessoas religiosas que professam publicamente sua fé. Para tanto, os cidadãos e cidadãs brasileiros precisam estar atentos, cientes dos seus direitos e com coragem para denunciar atos que violem as suas liberdades civis fundamentais. Neste sentido, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) possui um serviço de atendimento específico para violação de direitos humanos. Por meio do Disque 100, que funciona 24 horas, todos os dias da semana, o cidadão pode denunciar todo tipo de ato dessa natureza – entre eles, naturalmente, o desrespeito à liberdade religiosa. 

Rafael Durand Couto

Jurista, Membro-fundador do Núcleo de Estudos em Política, Cidadania e Cosmovisão Cristã (NEPC³) e Membro da Igreja Evangélica Congregacional Zona Sul (Campina Grande – PB).


[1]Regina, Jean Marques (2018-09-20T22:58:59). Direito Religioso: Questões práticas e teóricas . Editora Concórdia. Edição do Kindle.

[2]Constituição Federal de 1988: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm

[3]Regina, Jean Marques (2018-09-20T22:58:59). Direito Religioso: Questões práticas e teóricas . Editora Concórdia. Edição do Kindle.

[4]Declaração Universal dos Direitos Humanos: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf

[5]  Constituição Federal de 1988: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm

[6]SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. nos termos da Revisão Constitucional de 1994. São Paulo: Malheiros, 1995.

[7]Janaina, Paschoal. Religião e Direito Penal: Interfaces Sobre Temas Aparentemente Distantes.

[8]A ESCOLA DO MST: REVOLUÇÃO ANTICRISTÃ E ASSALTO À SAGRADA ESCRITURA http://www.puggina.org/artigo/outrosAutores/a-escola-do-mst-revolucao-anticrista-e-assalt/3279

[9]Valmir, Nascimento. O Cristão e a Universidade . CPAD. Edição do Kindle.

[10]Intolerância religiosa no ordenamento brasileiro

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