Fonte primária do texto: A Protagonista – Gazeta do Povo
A decisão é da Inglaterra, onde obviamente florescem com muito mais vigor que no Brasil as pautas identitárias. A diferença é que os juízes de lá não têm medo de aplicar as leis vigentes, ainda que descontente categorias hypadas ou até mesmo o primeiro-ministro e a rainha, como ocorreu no caso recente em que o fechamento do parlamento foi considerado ilegal. O preâmbulo é necessário para comparar a diferença de tratamento dada às pautas identitárias pela Justiça do Brasil.
Não quero discutir aqui o que é certo ou errado, quais os direitos que as pessoas trans devem ter. A discussão é sobre os direitos que elas têm ou não, de acordo com a lei. O Judiciário deve guardar a lei, mudanças nela cabem ao Legislativo.
Freddy McConnell, de 32 anos, mora na cidade de Kent, próxima de Londres. Nasceu menina, vive há muitos anos com identidade masculina mas decidiu manter seus órgãos reprodutores femininos. Recentemente, recorreu a uma clínica de fertilidade para fazer uma inseminação artificial e ter um bebê. E aí é que vem o questionamento que foi parar na Justiça: é mãe ou pai da criança?
Apesar de ter engravidado e gerado o bebê – o que só pode fazer porque tem órgãos reprodutores de mulher – Freddy McConnell entrou na Justiça para que constasse como pai na certidão de nascimento do bebê, já que se identifica com o gênero masculino. A decisão é algo maior do que parece, não se trata de um único caso, mas da primeira definição de maternidade na common law inglesa. O desafio coube a Sir Andrew McFarlane, integrante da alta corte de família da Inglaterra. O resultado desagradou quem milita por pautas identitárias.
A Inglaterra decidiu que engravidar e dar à luz é maternidade, independentemente do gênero com o qual a pessoa se identifique. Freddy McConnel constará como mãe no registro do bebê que teve ano passado.
A reação contra a decisão do juiz foi feroz. O caso, desconhecido no Brasil, está em toda a mídia inglesa. A história rendeu até um documentário de sucesso, com direito a crítica nos principais jornais do país, chamado Seahorse, cavalo marinho. Esta é a única espécie animal em que o macho engravida. A reclamação é que a decisão do juiz privilegiou a família tradicional e pode causar problemas a famílias formadas em moldes não tradicionais. Mas daí surge o questionamento: qual é mesmo o papel do juiz? Aplicar a lei.
Na lei inglesa não havia definição de maternidade até então e, como o parlamento não se manifestou para introduzir nas leis um conceito ideológico ainda não comprovado pela ciência, o juiz manteve o que é comprovado: engravidar e parir significa ser mãe, não ser pai. Importante observar que a lei inglesa reconhece o direito da pessoa trans se identificar com outro gênero, mas isso não abrange o papel de mãe ou pai quando a opção é por ter um filho biológico.
Aqui no Brasil, as pautas identitárias sejam, talvez, os mais gritantes exemplos da ferocidade legislativa do Judiciário, que vem crescendo cada vez mais e deve se sedimentar diante de um Executivo boquirroto e um Congresso fisiológico e covarde. As duas principais definições sobre pautas identitárias não foram definidas de acordo com a lei.
O casamento entre pessoas do mesmo sexo e a definição de homofobia como crime foram decisões que atropelaram a legislação. Não estou discutindo se são corretas ou não, se são direitos que deveriam ser garantidos ou não. Falo do papel do STF, que deveria ser guardar a lei, não mudar a lei.
A observação perspicaz, aliás, nem é minha. Abri meus olhos para essa realidade em uma palestra da ministra Eliana Calmon em um evento da Associação Mulheres da Verdade no dia 3 de setembro, aqui em São Paulo. Ela falava de outro tema, de como precisamos da cidadania e da sociedade civil para barrar o descontrole do STF, que se tornou órgão todo-poderoso. Não contemos com um Congresso de gente pendurada em processos nem com um Executivo que vive de atiçar uma massa ressentida contra moinhos de vento. Sem a sociedade civil, o problema vai se aprofundar, raciocina ex-Corregedora Nacional de Justiça.
O caso mais gritante – ao qual, confesso, não havia jamais atentado – é o do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na Constituição de 88, casamento é entre homem e mulher e não cabia ao STF fazer a mudança, mas garantir a regra. Mudar é prerrogativa do Congresso, às vezes provocado pelo Executivo.
A ministra deixou bem claro que não está julgando se esse conceito de família é o correto. Deixou até subentendida a necessidade de proteção a outros modelos de família, diferentes do casamento entre pessoas do mesmo sexo, como avós que criam netos, tios que criam sobrinhos e todos os arranjos que fazem parte do cotidiano de muita gente que conhecemos. O ponto não é esse, o ponto é que o STF não pode ter esse nível de poder nem nessa nem em outras questões. Judiciário julga de acordo com a lei, não muda lei.
O outro caso é o da inserção da homofobia na lei do racismo, que já havia virado uma salada por obra e graça do próprio Congresso. Bom salientar que jamais houve uma condenação de acordo com essa lei, mal estruturada. A única quase-condenação saiu do gabinete da desembargadora Luislinda Valois, na Bahia e foi revertida nos tribunais superiores. As condenações que vemos na imprensa como racismo são, na verdade, todas por injúria racial, que tem pena menor mas é uma peça legal mais estruturada, que possibilita condenações.
Foi no Congresso Nacional que decidiram, pelo bem geral da nação, agregar o crime de discriminação religiosa a essa lei que nunca condenou ninguém. Eu acho uma perda de tempo e uso do processo legislativo para marketing mas, até aí, tudo no direito de quem fez e de quem reclama. A questão é o STF depois decidir enfiar na mesma lei o crime de homofobia.
O debate não é sobre a existência de homofobia ou sobre a necessidade de punição, é sobre a forma como se criou um novo crime no Brasil, via Judiciário. Isso é inadmissível. Juiz não pode criar crime, tem de julgar gente dentro da lei.
Houve quem argumentasse que isso combateria os diversos casos brutais e absurdos de violência contra pessoas porque são homossexuais. Não creio. Essa mesma lei não combateu racismo nem preconceito religioso, nunca condenou ninguém. Por que iria funcionar agora? O STF faz mágica? E há mais um questionamento aí: será que a forma como se determina o que é homofobia, copiando uma definição de racismo, serve para melhorar nossa sociedade ou para polarizar ainda mais o debate? Não sei.
A questão é que, mais do que nunca, precisamos de instituições que funcionem. O culto à personalidade, a santificação de determinados tipos de militância e a inimputabilidade da negligência política se misturam à nossa cultura para fazer de nós um país que acredita em pessoas, sobretudo em valentões. É assim que criamos instituições poderosas demais e sem controle externo. Não precisamos de ídolos e justiceiros, precisamos de servidores públicos.
Escrito por: Madeleine Lackso
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