Leroy Eims disse que “um líder é aquele que vê mais do que os outros, que vê mais longe do que os outros e que vê antes dos outros”. Podemos afirmar, então, que um dos maiores visionários de todos os tempos foi um deficiente visual chamado Louis Braille (1809-1852). Sua trajetória no século 19 é uma luz para este distópico início de século 21.
Braille perdeu a visão após um acidente na infância: aos três anos de idade feriu o olho esquerdo na loja de selas e arreios de seu pai na cidade de Coupvray, distrito de Seine-et-Marne, na França. O machucado severo infeccionou e alcançou o outro olho. As privações ocasionadas pela cegueira não impediram Louis Braille de se destacar ainda na infância: foi um jovem assíduo na igreja local e proativo na escola, a ponto de se tornar líder de turma. Com a articulação do padre Jacques Palluy, amigo da família Braille e grande incentivador, Louis ganhou financiamento para estudar no Institut Royal des Jeunes Aveugles de Paris (Instituto Real de Jovens Cegos de Paris). Nesta escola, Louis Braille entrou para a história da civilização ao elaborar seu método de leitura para cegos.
Aluno cego lê texto em braile — Foto: TV Globo/Reprodução
O método Braille não partiu do nada, mas dos métodos iniciais de leitura tátil, também conhecidos como anagliptografia. As primeiras tentativas foram realizadas pelo fundador do instituto, Valentin Haüy: ele percebeu que as folhas impressas na gráfica exibiam no verso todas as letras em relevo, porém invertidas. Haüy aplicou essa ideia de “letras em relevo” para alfabetizar alunos cegos através do tato. Outro passo foi dado pelo militar francês Charles Barbier cujo objetivo era criar um sistema para mensagens noturnas em campos de batalha. Barbier não trabalhou com letras em relevo, apenas com pontos. Neste sistema, havia “grupos de doze pontos” que formavam uma letra. O problema é que os métodos de Haüy e Barbier eram lentos e ineficientes. Foi então que Louis Braille, ainda muito jovem, entre 15 e 16 anos, testou e apresentou seu próprio sistema de leitura palpável, reduzindo cada letra para apenas “seis pontos” (a cédula braille é composta de seis pontos dispostos em duas colunas – cada coluna com três pontos; conforme a posição dos pontos marcados forma-se uma letra, número ou sinal; em cada cédula são possíveis 63 combinações diferentes). O método funcionou: a velocidade e fluência da leitura aumentaram consideravelmente. A utilidade prática do sistema foi logo comprovada e já em 1830 aplicada na escrita escolar especial. O próprio Louis tornou-se professor. O novo método possibilitou o acesso dos cegos à grande parte da educação que antes lhes era inacessível.
No curso do século 19 ocorreram desafios na implementação do braille como a resistência de alguns educadores e os altos custos para a produção do material adaptado. Contudo, aqueles que resistiram foram completamente vencidos. Pouco a pouco o método conquistou autoridades mundo à fora. Uma das primeiras nações a demonstrar interesse foi o Brasil. Conforme a pesquisadora Pamela Lorimer afirmou em sua tese de doutorado sobre a evolução do método Braille pela Universidade de Birmingham: “uma apreciação mais ampla ocorreu em 1854, quando o Imperador do Brasil encomendou uma cartilha portuguesa e pagou por um novo e completo conjunto de tipos para esse fim (uma cópia é exibida no museu Coupvray)”. Na Alemanha, o método foi adotado no ensino para cegos em 1879 e assim sucessivamente pelos países da Europa, América e demais continentes. A Unesco estabeleceu em 1951 o código internacional do braille e fundou o Conselho Mundial Braille padronizando a escrita para cegos mundialmente.
Em 1952, no centenário da morte de Braille, as autoridades francesas exumaram seus ossos e o acolheram no Panthéon – onde estão sepultados os maiores heróis da nação. Braille é considerado hoje um benfeitor da humanidade. Seu nome foi incorporado à diversos idiomas e dicionários – incluindo o português como a palavra “braile”. Na computação, a linguagem braile é considerada a primeira forma de linguagem binária da era moderna. No direito, em todo o mundo há leis estabelecendo o sistema braile como forma de integração cidadã dos deficientes visuais. No Brasil, por exemplo, é obrigatório linguagem braile em elevadores e caixas de remédio. Desde o Decreto nº 5.296 de 2004 o braile passou a ser um direito do cidadão.
*Davi Lago é paulistano, professor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP.