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Coronavírus: como as igrejas estão se adaptando a canais on-line

Reportagem REVISTA VEJA – Maria Clara Vieira

Com raízes fincadas no elusivo mundo espiritual, as religiões têm nos rituais da liturgia o canal mais direto de conexão dos fiéis com a crença no que não está diante dos olhos. A presença no templo e, dentro dele, a repetição de atos de fé cuja origem se perde no tempo têm o poder de materializar no mais humano dos planos — o físico — a imaterialidade daquilo que é divino. Agora que o onipresente distanciamento social esvaziou os locais de devoção e os serviços são oferecidos em plataformas on-line, devotos em todo o mundo estão tendo de se adaptar à perda, pelo menos em parte, dos ritos que alicerçam as crenças — no justo momento em que mais precisam do conforto que tiram delas. Na sexta-feira 27, em um gesto de marcante simbolismo dos efeitos do novo coronavírus no catolicismo, o papa Francisco postou-se solitário no centro da Praça de São Pedro, no coração da Cidade do Vaticano, interditada aos 20 000 visitantes que recebe diariamente, e lá rezou pelo fim da pandemia. Em seguida, pronunciou, em caráter excepcional, a bênção Urbi et Orbi, reservada ao dia de Natal e ao domingo de Páscoa, oferecendo o perdão dos pecados aos católicos que perderam a vida sem confissão nem extrema-unção, segregados em leitos de hospital, bem como aos profissionais de saúde. “Nossa fé, porém, é fraca, e sentimo-nos temerosos”, disse.

A pandemia levou a maioria das dioceses dos países atingidos a suspender ações de rotina. No Brasil, decretos estaduais proibiram aglomerações e, por tabela, fecharam as portas dos templos. Jair Bolsonaro inseriu as igrejas na lista de atividades essenciais, preservando seu direito de manter as portas abertas, no entanto elas continuaram vazias. “O decreto permite o acesso ao prédio, onde padres e pastores seguem gravando serviços. Mas a quantidade de pessoas no local precisa atender às recomendações do Ministério da Saúde”, explica o advogado Jean Regina, do Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Difícil mesmo, na transição da missa para o mundo virtual, é se conformar, por exemplo, com sacramentos modificados para o rebanho distante do altar. “O sacramento é a união de um símbolo físico — o pão, o vinho, a água, a bênção do padre — a uma experiência de fé. O que se experimenta como transcendente passa pela experiência sensorial”, explica o teólogo Felipe Magalhães, da PUC-MG.

O rito da comunhão é o ponto central da missa católica, obrigatório aos domingos, e a solução encontrada pela Igreja foi o padre oferecer a hóstia e beber o vinho enquanto cada fiel, ajoelhado em casa diante do monitor, faz uma oração recomendada, a chamada “comunhão espiritual”. “É muito diferente. Sinto como se minha comunicação com Deus fosse uma sintonia de rádio que agora sofre interferências”, diz a esteticista Agda Santana, de 49 anos, católica que costuma ir à missa diariamente. A aposentada Edileuza Caparica, de 70 anos, sente falta da confissão tête-à-tête com o pároco da Igreja da Penha, no Recife, onde também frequentemente se supre de água benta. “Quando eu faço alguma coisa errada, não fico em paz até me confessar. Agora eu rezo bastante, peço perdão a Deus, mas me vem a sensação de que está faltando a bênção do padre com a mão na cabeça. Para a gente que não tem mais pai nem mãe, significa muita coisa”, emociona-se. O teólogo Magalhães vê no sacramento a distância um precedente que pode ter efeitos pós-pandemia. “A missa sem presença física nunca teve valor como preceito. Mas, aberta a exceção, quem sabe não se coloca a questão se o sacramento passa necessariamente pela experiência do corpo. A concepção de liturgia pode ser ampliada”, reflete.

As igrejas evangélicas praticam a Santa Ceia em média uma vez por mês e o rito não requer um sacerdote presente. Na casa da estudante de marketing Sara Fabiane, de 22 anos, em Barueri, São Paulo, os serviços religiosos on-line já viraram rotina. “A gente sente falta de estar com o pessoal da igreja, mas assistir ao culto a distância nunca foi um problema”, diz Sara, que, nas redes sociais, se define como “webcrente”. O computador fica instalado em um cantinho da mesa, conectado à TV. “No momento da comunhão, cada um pega um pedacinho de pão e toma um gole de suco de uva”, descreve. Na sede da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, os cultos são gravados na presença do pastor, um músico e dois operadores de câmera e som. “As mega-churches não foram pegas desprevenidas. Abrimos canais de WhatsApp e telefone para os fiéis”, conta o pastor Flavinho Marques. Para a cientista da religião Lidice Meyer, da Universidade de Lisboa, a maior vantagem dos evangélicos neste momento é a quantidade de jovens. “A média de idade é menor do que entre os católicos praticantes, e eles sempre exploraram rádios e canais religiosos”, lembra Lidice.

Os sacerdotes católicos, enquanto isso, vão aprendendo a pregar nestes tempos. Falar a 50 000 pessoas pelo YouTube, aponta o padre Omar Raposo, da Paróquia São José da Lagoa, é muito diferente de se dirigir a um público de 300 fiéis. “O discurso tem de ser direto, sem muita firula. Segurar a atenção exige assertividade”, afirma. Na Igreja de Nossa Senhora do Bom Parto, no Tatuapé, bairro da Zona Leste de São Paulo, a capela onde as missas são gravadas ganhou uma imagem nova de Nossa Senhora Aparecida. “A gente tem de investir no visual, porque a pessoa também reza com os olhos”, justifica o pároco Tarcísio Mesquita.

Esta não é a primeira vez que uma pandemia impõe limites à prática da religião. Durante a gripe espanhola, de 1918, as igrejas protestantes e algumas dioceses católicas nos Estados Unidos fecharam as portas. Séculos antes, quando a peste negra varreu a Europa, padres católicos estavam entre os mais atingidos (veja o quadro acima) por causa do contato frequente com infectados. Creia-se ou não, as religiões costumam estar na linha de frente do combate e, principalmente, do consolo em meio a crises humanitárias. Não surpreende, portanto, que na última sexta-feira de março, com a pandemia devastando o planeta, 11 milhões de pessoas tenham se conectado para receber a bênção papal e se solidarizar com o senhor de 83 anos, sem a parte superior do pulmão direito, que do centro da praça deserta lembrou: “Estamos todos no mesmo barco”. Francisco não via ninguém à sua frente. Mas era ouvido por uma multidão em busca do conforto — virtual, que seja — que a fé pode suprir nos momentos mais terríveis.

Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681

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